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terça-feira, 13 de setembro de 2016

O ACIDENTE

I

Ao segundo telefonema, D. Joana sentiu crescer no peito o aperto que horas antes começou a sentir, quando o primeiro telefonema perguntava pelo filho, César, que ainda não havia chegado à casa da sua irmã Ângela. Passara a tarde numa sutil, mas crescente, preocupação com a demora em receber notícias do filho, que na manhã anterior havia saído de casa com seus amigos da faculdade. Ao meio dia, olhando o céu nublado e opaco, sentiu uma inquietação lhe apertar o peito. No meio da tarde, no silêncio da casa vazia, o som do telefone tocando foi como uma sirene de ambulância, e o que ouviu de sua irmã somente aumentou o peso frio e doloroso em seu peito. Depois a sequência de telefonemas. Os pais dos amigos ligando uns para os outros. Os jovens já deviam ter chegado à fazenda, no sertão. Doze horas de viagem, quinze no máximo. Mas nada feito.
Eram cinco jovens de classe média, Juliana, Marcela, César, Tiago e Rodrigo. Todos animados com o início das férias, todos animados com o passeio. César havia chamado a noiva, Marcela, o casal de amigos Juliana e Rodrigo e mais um amigo, pois a fazenda da Tia Ângela ficava no alto da Serra Vermelha, depois do Vale do Monteiro, um lugar muito bonito e sossegado, ideal para alguns dias de descanso saudável. Mas algo havia saído errado.
No dia seguinte já estavam os parentes dos cinco refazendo o caminho percorrido pelos jovens no automóvel de Rodrigo. Funcionários de alguns postos de combustível pareciam lembrar-se do automóvel vermelho-vinho e dos cinco ocupantes. A imprensa local tomou conhecimento do caso, provavelmente acompanhando o movimento da polícia nas buscas, e o fato se tornou notícia. As emissoras locais de TV noticiavam o desaparecimento dos jovens, exibindo as fotos para que as pessoas pudessem reconhecê-los caso os vissem. A polícia começava a trabalhar com a ideia de sequestro ou acidente, intensificando as buscas. Nas casas dos familiares, não havia paz. Havia apenas tensão, insônia. Pais evitando pensar no pior, embora fosse difícil imaginar que tudo estivesse bem. Fazia já quatro dias que não se tinha notícia nenhuma dos jovens.
No final da tarde do quinto dia, um telefonema pôs fim à angústia, mas trouxe consigo toda a dor. Uma dor fria e pesada, acumulada por quatro dias como um engasgo seco e áspero. O automóvel, com cinco cadáveres a bordo, foi encontrado no fundo do Rio das Onças, cerca de quinze metros barranco abaixo á beira da Estrada da Serra, numa área de mata nativa de difícil acesso. Após horas de trabalho, o veículo foi guinchado e os corpos dos cinco ocupantes puderam ser resgatados e entregues aos familiares para o funeral. Marcas na pista indicavam que o motorista perdeu o controle do automóvel, talvez tentando evitar uma colisão com algum veículo em sentido oposto ou animal na pista, capotando em seguida e despencando no declive, vindo a afundar no rio. Na cidade onde viviam houve uma grande comoção e várias pessoas compareceram ao velório coletivo. Os jornais noticiaram a tragédia daquelas cinco vidas promissoras, interrompidas de forma tão breve e tão triste. Nenhum dos jovens tinha mais que 25 anos de idade. O laudo da perícia realizada no automóvel indicou que o mesmo estava a 97km/h, dentro do limite daquela via. O motorista havia freado o veículo, e não foram verificadas marcas de nenhum outro veículo na pista no local do acidente, reforçando a hipótese levantada pela polícia quando foi encontrado o carro sinistrado. Uma infeliz fatalidade, aparentemente sem culpados se não um trágico acaso.

II

César não deu nenhuma atenção ao clique metálico seguido do chiado característico quando alguém atrás dele, provavelmente Juliana ou Tiago, abriu uma lata de cerveja. Tamborilava o volante do Honda acompanhando as batidas, balançando os ombros e cantarolando baixinho ‘tchê tchê tchê...’ com os olhos atentos na estrada. Fazia quase uma hora que haviam saído do posto no trevo de Campina, onde assumira a posição de motorista para que Rodrigo descansasse e, naquele momento, acabava de fazer a conversão à esquerda para tomar a Estrada da Serra em meio a uma neblina baixa e suave. Os faróis do carro permitiam um vislumbre da mata fechada que iriam cruzar até o topo da Serra, dali a mais uns quarenta minutos ainda. Tiago e Marcela cantavam animadamente, acompanhando o som do carro e improvisando uma alegre dança no aperto do banco traseiro, ao som das sanfonas e violões. A floresta era densa e fechada á sua volta. Os galhos das árvores formavam um túnel através do qual o automóvel seguia em curvas. Estavam indo bem na estrada. Mais duas horas e chegariam no Vale de Monteiro. Se houvessem saído logo cedo, pela manhã, chegariam no início da noite, mas alguns imprevistos os fez saírem na hora do almoço. Doze horas dirigindo e deviam chegar entre meia noite uma hora da madrugada naquele fim de mundo. Esboçou um sorriso, imaginando os dias que teriam pela frente.
O carro fez uma curva em declive, cruzando o túnel verde de árvores. Foi nessa hora que tudo ocorreu. Nos instantes de maior trauma, a percepção temporal parece distorcer os minutos e segundos, alongando-os. Os olhos, mesmo num vislumbre de alguns segundos, capturam cada detalhe do que está á sua volta, e nossa mente retém cada detalhe do que ocorre. Os sons, imagens, um registro de nitidez impossível para um intervalo tão curto numa situação normal. César, que dirigia o carro, Rodrigo, sentado ao seu lado no banco do carona, e Marcela, sentada no meio do banco traseiro, puderam ver com clareza, e mesmo naquela fração de segundos, o horror lhes fez o sangue gelar. Uma coisa humanoide, pálida e esqueletal, vinha caminhando pela estrada. Os ombros recurvados, os braços longos e os dedos sinuosos e esqueléticos como raízes mortas. A cabeça cadavérica de lobo ou de um cão em cujas profundas e escuras órbitas oculares flamejavam olhos de um brilho demoníaco e fantasmagórico, e no alto da testa, um par de chifres em galhada que mais lembravam os ramos apodrecidos de uma árvore morta. E o som. O som que parecia vir das profundezas de outro mundo, um urro fantasmagórico e espectral soando profundo na noite. Aterrorizado, em meio aos gritos de pavor dos ocupantes do carro, César tenta desviar da medonha aparição. Ainda ouve o urro aterrador soando na escuridão enquanto o carro capota e despenca no barranco, afundando no rio.


Autor: Alexandre Ricardo de Santana.

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