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segunda-feira, 19 de setembro de 2016

AS NOITES NO FAROL

Não vou falar do mar como falam os poetas, floreando em versos o eterno vai e vem das ondas, o som da espuma a se espalhar sobre a areia ao pôr do sol para o deleite dos enamorados e para a dor cálida dos solitários. Nem vou falar do mar como os pescadores, devotos apaixonados e reverentes desta força incontrolável e imprevisível que tudo lhes dá e que tudo toma se não for devidamente respeitada. Tão pouco vou falar como os cientistas, estes ingênuos detentores da informação que mapearam seus abismos e catalogaram suas espécies e como suas correntes afetam os verões e os invernos e causam tempestades. Não, eu vejo o mar de outra forma. Chegamos num sábado frio e úmido, já perto de anoitecer, Lembro como se fosse hoje. As docas de madeira escura com uns poucos barcos de pesca atracados e o chuvisco caindo leve. As colinas escondidas pela neblina. Já faz muito, muito tempo. Este velho ainda era um rapaz forte, aventureiro. Naquele tempo eu era da marinha. Quando não estava embarcado, estava com os outros marujos bebendo no porto, cortejando as damas de vestidos decotados que frequentavam aqueles lugares. Não era uma vida ruim, apesar da trabalheira e todas aquelas ordens. Numa daquelas feitas, estávamos num porto da Costa Rica quando um dos oficiais passou dos limites com uma moça. Eu já bêbado tomei as dores e foi uma confusão do diabo. No fim fui em cana no navio por uns dias e o oficial foi para a enfermaria consertar o olho e o nariz. Não posso dizer que não valeu a pena. Ganhei uma consciência limpa e um orgulho bem polido depois disso, embora tenha ficado retido por um tempo para serviços administrativos e internos, sem pisar em um convés. Foi assim que me ajeitei na vida, aos poucos. Fui gostando de estar mais tempo em terra, passar mais tempo com amigos, namoradas. Claro, eu não sabia que a punição pessoal daquele oficial filho de uma rameira ainda estava por vir. O filho de uma puta entendia bem que a vingança era mais doce depois de fria.
Desse jeito, fui mandado para supervisionar as obras de um farol na costa de uma cidade bastante longe. Eu não volto lá faz bastante tempo e prefiro não dizer aonde é. Não quero que um curioso invente de investigar o que eu digo para saber se é verdade e, bem, aconteça algo. Nem estou pedindo que acreditem em mim, eu mesmo não acreditaria nessa história se a ouvisse de alguém, só não acho uma boa ideia irem atrás de coisas que é melhor serem esquecidas. Mas estou velho. Velho e já bem cansado de guardar esse segredo, não sei se quero levar isso para a cova. Acho que vocês me entendem.
Partimos numa manhã de sábado numa fragata. Era junho. Lembro disso porque as pessoas estavam começando a enfeitar suas casas para as festas juninas e naquela manhã o céu estava bem nublado. A viagem foi até tranquila, mesmo com a chuva que ia e vinha e as ondas que o vento levantava.
Chegamos lá sem problemas. Uma cidade pequena, cheia de pescadores, ao pé de umas colinas bastante altas. O mar ali era frio, vasto, com ondas largas. O oficial responsável pela obra me falou que ali teríamos de reformar e modernizar o farol antigo, ainda iluminado a querosene. Eu teria que acompanhar tudo de perto e ajudar a implementar as modificações porque eu seria o responsável por aquele farol. Eu não sabia como receber aquela notícia. Estava acostumado ao novo tipo de trabalho, a nova rotina, embora sempre tenha gostado de navegar e aventurar. De repente me ver ali, naquele fim de mundo, operando um maldito farol?



Não foi difícil perceber por quê fomos mandados ali. Mesmo aquela cidade sendo pouco mais que uma vila de pescadores isolada nos confins do litoral, e o acesso ao farol fosse uma estrada deserta de cinco quilômetros até um minúsculo píer, aquela região era rota de várias embarcações. O mar ali era agitado, quase sempre enevoado ao fim do dia e durante a noite, permeada por uma linha de rochas bastante perigosa que já havia posto a pique algumas embarcações. Um brigue de bandeira italiana no começo do século XX se chocou com as pedras e naufragou, matando mais de trinta pessoas, e um pesqueiro nos anos 1950 também afundou após bater nas pedras não muito longe de onde o brigue italiano havia naufragado. O pequeno farol que opera lá já era muito, muito antigo, precisava de uma iluminação mais potente e de uma sirene para o nevoeiro.
Trabalhávamos durante o dia, e nem era tanto trabalho assim instalar a nova iluminação e o sistema da sirene. Durante a noite eu ficava no farol com o faroleiro antigo que estava para se aposentar. Um pescador já muito idoso que, mesmo naquelas vestes humildes e em sua voz branda, tinha uma nobreza nos modos que inspiravam muito respeito, o velho Sebastião. Havia nascido numa senzala e em sua vida havia testemunhado tanta inequidade que preferiu ir para longe das pessoas. Vivia sozinho ali, num casebre no meio do nada junto à estrada do píer, pescando nas horas de folga do dia e manejando o farol à noite. O Velho Sebastião me contava coisas de outros tempos, me falava das lendas do mar. Algumas coisas que fariam qualquer um pensar bem antes de pisar num convés e trancar bem as portas antes de dormir se morassem nos ermos do litoral. Uma vez ele me contou sobre a coisa que devastou uma pequena esquadra da Marinha dos Estados Unidos muitos anos antes.
- Vou contar uma coisa ao senhor, Seu Matias – disse ele com um jeito sério, pitando o cachimbo, coçando a barba. – Uma vez estávamos eu, Mestre João e o português Afonso na pesca, lá no alto mar. Faz já muito tempo, acho que era 1925 ou 1930, por aí. Tava um tempo gostoso, o friozinho de abril começando a bater. Foi o português que viu lá de longe um bote perdido. Daquela distância não dava pra ver ninguém e a gente na mesma hora virou a traineira e foi atrás pra socorrer e ver se tinha alguém vivo. Quando abordamos o bote encontramos os marujos quase desmaiados, amontoados num canto do barco. Estavam desidratados, morrendo de fome, meio doentes, coitados. Trouxemos eles a bordo e rebocamos o bote até o atracadouro da vila. Mas o que chamou a atenção da gente, Seu Matias, era que aqueles homens pareciam, mais do que qualquer coisa, profundamente assombrados. Pelas roupas e pelo bote deu pra notar que eram da Marinha dos Estados Unidos, mas deu algum trabalho entender que eles naufragaram de repente sem conseguir mandar um SOS e eles nem achavam mais que estavam sendo procurados pelo resgate porque certamente foram dados por mortos. É claro que a gente estranhou aquilo, né? Já viu marujo estrangeiro, potentado, não mandar nem um pedido de ajuda? A gente deixou pra lá, era mais importante ajudar aqueles desvalidos. Ninguém nunca soube disso, claro. Os militares guardam segredo melhor do que vocês pensam e ninguém daquela vila humilda ia sair de onde estava para contar as coisas que ouvia. Aqueles pobres homens estavam machucados e esgotados, assustados com alguma coisa que não era apenas a fome e a sede do naufrágio, falavam somente em inglês e ainda assim não pareciam ansiosos para conversar com ninguém. Mas um deles falou. Um dos homens falava um pouco de espanhol, que Afonso entendia, e usou sinais e gestos para tentar contar sobre o incidente. Estavam em algum ponto do Atlântico Sul, patrulhando as águas, disse ele, quando avistaram um pequeno grupo de ilhas que avistaram ali perto. Não lembrava de ter visto menção ao minúsculo arquipélago em nenhuma carta náutica antes e resolveram investigar. A maior das ilhas era pouco mais que um rochedo cercado por uma praia e não devia ter sequer um quilômetro de extensão. Depois de algumas horas estacionados naquele local, os oficiais deram a ordem de suspender as âncoras e partiram naquela mesma tarde, e o sol estava se pondo quando o sonar acusou de repente alguma coisa imensa navegando abaixo deles. A Primeira Guerra tinha acabado já, mas não fazia tanto tempo assim, tinha deixados muitos homens marcados. Os homens estavam tensos e, achando se tratar de inimigos, atacaram com cargas de profundidade. Mas aquilo não era o inimigo. Ao menos não o tipo de inimigo que eles esperavam. O marujo contou que não pôde ver o que os atacou. Estava no convés principal pronto para assumir um dos canhões ouvindo alarme do navio quando ouviu o rugido de um animal gigantesco - disse ele que aquilo o deixou um ou dois dias sem ouvir direito – e viu alguma coisa imensa emergir de repente, adernando a embarcação onde estava. Num relance, entre as ondas, quando tentava se agarrar em alguma coisa pra não ser lançado ao mar, ele chegou a ver o que lhe pareceu a cauda de um réptil colossal desabar com um golpe sobre o navio, partindo-o ao meio e atirando ao mar toda a tripulação em meio aos destroços. Enquanto tentava se salvar ele ainda viu uma coisa imensa despedaçar outros dois navios. Foi um ataque devastador e fulminante que sequer deu tempo de pedirem socorro, em menos cinco minutos restavam apenas manchas de óleo boiando junto com algum destroço no meio das ondas. Ele e alguns outros marinheiros conseguiram recuperar um bote e alguns suprimentos. Depois disso eles ficaram muitos dias entregues à sua sorte e semanas depois a gente achou eles. O homem que relatou à gente esse ocorrido disse também que um dos seus colegas, que morreu a bordo do bote dias antes de os encontrarem e foi jogado morto ao mar, contou ainda agonizando que naquela ilha eles haviam encontrado um estranho círculo de pedras parecendo algum tipo rudimentar de templo ou monumento e ali, no meio do círculo, um tipo de altar rústico e aparentemente muito antigo. Naquele altar havia um pequeno obelisco de pedra escura cujas faces eram cobertas de entalhes hieroglíficos que ninguém identificou e figuras de estranhas criaturas. Ele havia sido um dos homens que recolheram aquela peça ao navio naquela tarde e achava que a coisa os havia os havia seguido atraída pelo estranho obelisco. O objeto lhe inspirava uma inquietação, disse ele, e uma sensação de mau presságio e o primeiro navio que atacou foi justamente o que a transportava.
Depois de me contar isso o velho se calou e ficou ali pitando o cachimbo. Nunca vou saber se aquilo foi verdade, se foi invenção do Velho Sebastião. As pessoas que ouviram aquela estória se foram há muito tempo. Os marinheiros foram entregues às autoridades, que se encarregaram de seu retorno e nunca mais ele os viu, segundo me contou. O próprio Sebastião, que Deus o tenha, há muito é falecido. Ao menos assim imagino, pois um dia ele seguiu com seu barco para pescar e jamais tornou a ser visto, foi o que me contaram.
Mas isto foi apenas uma estória contada por um pescador idoso que gostava de uns goles de aguardente quando não estava muito ocupado. A estória que ele me contou quando me disse para ter cuidado com o mar e com as coisas das profundezas na tarde em que me deixou as chaves do farol e foi embora dali. Foi uma das últimas vezes que vi o velho Sebastião.
Uma coisa que notei nas minhas primeiras visitas ao farol, embora não houvesse dado nenhuma atenção no momento, foram as pedrinhas em alguns pontos ali do dique. O farol ficava num rochedo a um quilômetro, mais ou menos, da arrebentação, e esse rochedo era a parte mais alta de um recife que formava uma ilhota delgada cuja maior parte permanecia submersa, ficando à tona somente na maré baixa, deixando uma ínfima praia pedregosa e triste em sua extensão. Andando por ali, vi que havia pequenas pilhas de pedras lembrando vagamente pequenas pirâmides. Somente quando passei a ficar sozinho ali é que comecei a prestar mais atenção naquelas pedras. Os pescadores quase nunca encostavam ali, as noites ali no farol só não eram mais solitárias porque eu sempre levava algum livro para ler e algumas revistas de palavras cruzadas. Mesmo o rádio que eu levava raramente captava alguma estação com nitidez. Ainda assim de vez em quando, ao amanhecer, ali estavam as pedras empilhadas como pequeninas pirâmides, estranhamente alinhadas em curiosas formações. Aquilo, aos poucos, começou a me intrigar e passei, então, a prestar mais atenção ao que se passava lá fora. Passava horas bebendo café para não cochilar e com os olhos vidrados na arrebentação nevoenta durante a noite inteira, mas nada via de extraordinário. Mas não podia conter aquele misto de curiosidade e um certo receio cada vez que encontrava as pedras empilhadas. Alguém estava visitando o farol naquela desolação no meio da noite e fazendo aquilo. Aquele pensamento, antes somente curiosidade, aos poucos foi crescendo para uma suspeita cada vez mais inquietante. E a cada vez que encontrava aquelas pedras, a suspeita passou lentamente a me encher de horror. Às vezes, mesmo com aquele medo que sentimos ao nos encontramos sozinhos em lugar tão ermo e impressionados com algo estranho qualquer, eu arriscava sair do farol para uma inspeção rápida. Meu sangue ás vezes gelava quando ouvia apenas o barulho das ondas quebrando contra o dique.
Numa noite, rapaz, eu estava mais impaciente que de costume. A curiosidade me fez descer os degraus do farol e ir até lá fora, como cheguei a fazer algumas vezes. Era uma noite de lua cheia e do mar vinha aquele nevoeiro salgado que eu começava a olhar com suspeita e mesmo já com algum temor. Caminhei ao longo do molhe ouvindo as ondas baterem com força contra as pedras e o vento zunindo frio em minhas orelhas. Meus passos crepitando no cascalho molhado do recife e os respingos das ondas me acertando vez ou outra. Sim, era contra o regulamento abandonar o farol, mas ninguém precisava saber daquilo. Eu era a única pessoa que pisava ali – ao menos deveria ser - além do oficial que, muito raramente, passava por ali durante o dia para uma inspeção.
Fui caminhando pelo dique até o final e fiquei algum tempo ali, de pé sobre uma pedra, olhando o nevoeiro iluminado pela lua, admirando com uma mistura de melancolia e medo, aquela desolação. Estava frio naquela noite. Fiquei ali um bom tempo com os braços cruzados olhando as grandes ondas. Sabe a expressão ‘gelar de medo’? Faz realmente ideia do que quer dizer isso? Eu desci da pedra depois de um tempo e me pus a caminhar de volta ao farol. Havia caminhado mais ou menos um terço do caminho. Foi quando eu os vi. Não sei exatamente o que eram, mas eles estavam lá, posso jurar por minha alma. Não pude vê-los com clareza, o nevoeiro era denso e a luz do farol, que iluminava bem a vastidão do mar adiante não iluminava bem o dique abaixo. Imagino que deviam ter a altura de um homem alto, não dava para saber. O que vi foram os braços muito longos, chegando aos joelhos. As mãos largas de dedos compridos e estranhos, tentaculares. Os corpos humanoides curvados e grotescos, com as cabeçorras de contornos aterradores embaçados pela névoa. E os olhos. Olhos imensos e amarelos, vidrados, com aquela luz fria e extraterrena como os de um peixe abissal. Aquelas coisas, creio que havia três delas, ficaram ali no nevoeiro, movendo-se numa espécie de ritual silencioso a empilhar as pedras. Moviam-se de um jeito esquisito, repulsivo, com aqueles longos braços esqueletais. Eu não consigo encontrar palavras para dar ideia do horror daquele instante. O que me lembro é que fiquei ali, trêmulo, catatônico de pavor e uma das criaturas, de repente, pareceu fixar aquele olhar pavoroso em mim. Em seguida as outras moveram estranhamente a cabeça, me apontando aqueles olhos medonhos. Acho que jamais vou conseguir explicar com a devida clareza o pavor que senti naquele instante. Havia somente o som do mar, o vento, e aqueles vultos sinistros e me encararem através do nevoeiro. Não sei como não quebrei uma perna ou o pescoço na minha fuga por aquelas pedras molhadas. Acho que é como aquelas coisas impossíveis que fazemos quando estamos apavorados, não é isso? Saí em disparada pela margem do dique oposta a arrebentação, mais acidentada e perigosa, me agarrando pelas pedras e saltando desesperado até alcançar o farol e fechar a pesada porta de ferro atrás de mim. Corri para o alto de lá fiquei a ouvi-los bater e arranhar lá embaixo até que o dia começou a raiar e eles se foram.
Durante o resto do tempo em que fiquei como operador do farol eu jamais tornei a sair durante a noite, e sempre conferia as balas do meu revolver antes de pegar o bote para o dique. Também jamais passei uma noite sossegado junto ao mar. Sempre verificava as trancas das portas e janelas e sempre deixava uma luz acesa e uma arma ou faca ao alcance da mão. Não sei o que vi naquela noite, não sei o que eram aqueles seres, mas, creio que não queriam ser descobertos. Ainda posso ouvir as tenebrosas batidas na porta de ferro do farol quando deito pra dormir, fazendo meu corpo se enregelar de medo, o raspar arrepiante das garras arranhando o metal e aquele som apavorante que faziam nas noites em que eles vinham me visitar. Eu nunca sabia quando eles viriam. Cada noite era uma espera interminável.
O farol, por fim, foi desativado alguns anos depois. Fui seu último operador. Lembro que fosse ontem a manhã em que tranquei aquela porta de ferro com um som tumular e tomei o bote de volta para a vila, de onde retornei à minha cidade. Nunca mais voltei lá e nem pretendo voltar, se querem saber. Jamais vou esquecer aqueles olhos fantasmagóricos me encarando vidrados no nevoeiro.
Sempre que forem a uma praia deserta, deem uma boa olhada se não há pedrinhas empilhadas ou algum desenho estranho na areia logo ao amanhecer, e sempre, sempre confiram as trancas de suas portas e janelas caso estejam junto ao mar. É somente um conselho que dou, pois tenho certeza que nenhum de vocês desejaria encontra-los.

Créditos: Alexandre Ricardo de Santana

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