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quarta-feira, 14 de setembro de 2016

ARTEFATO

Um anel pesado de metal rústico, adornado com uma pedra negra bruta de um brilho profundo e intenso. Nada que despertasse grande interesse ou cobiça, mas que ainda assim chamava a atenção por sua beleza peculiar que parecia vir de um tempo inimaginável. Mateus segurou diante dos olhos o objeto que acabara de encontrar, cheio de interesse. Pareceu a ele ser um antigo amuleto. A quem havia pertencido? Quem havia sido seu dono? Que valor lhe fora atribuído? Dizia-se que, outrora, aquele lugar onde havia achado o anel fora um local sagrado para as tribos pré-históricas e seus extintos descendentes. Um terreno onde apenas xamãs e feiticeiros podiam pisar. Mateus olhou ao redor de si, contemplando o silêncio e a desolação da vasta paisagem. Estava no alto de uma imponente colina onde funcionava a estação de monitoração de satélites onde trabalhava. Na verdade, a estação nada mais era que uma pequena sala de operação abrigando uma compacta e complexa combinação de equipamentos eletrônicos. Ao lado, erguia-se uma enorme antena de ferro pintada de branco e vermelho repleta de transmissores e receptores de sinais. Ali no alto o terreno era pedregoso, seco e sem vida. Ao redor do topo, o mato crescia em profusão, engrossando à media que ia descendo a encosta e logo se fechando numa mata inescrutável que se estendia longamente até as distantes margens da estrada que cortava a região. Diziam os poucos habitantes daquele lugar isolado e remoto que “coisas estranhas” aconteciam ali na mata.
Mateus pôs no bolso o anel, fitando mais uma vez a mata mais abaixo, sentindo o vento fresco nas orelhas. Olhou o céu, onde escassas nuvens negras e pesadas desafiavam o calor do sol intenso, e se dirigiu ao alojamento.
Com um longo bocejo, concluiu entediado o relatório de monitoração horária. Os olhos ardiam, fustigados pela colorida claridade dos diversos monitores e pela miríade de pequenas luzes dos equipamentos a sua volta. Tomou novamente entre os dedos o anel, contemplando-o longamente sob a colorida penumbra da sala. Sentiu-lhe o peso. Admirou distraído a pedra negra e seu brilho hipnótico, feliz por havê-lo encontrado. Imaginava a vida ali há incontáveis anos atrás, o ourives que o havia forjado, a mão que adornara. E por horas deixou-se distraidamente absorver pelo objeto.
Mais tarde, já à noite, Mateus interrompeu brevemente a leitura e passou, cheio de enfado, uma rápida vista nos monitores à sua frente, certo de que nada demais havia para constatar ou anotar. Deveria estar em casa àquela hora, mas o sujeito que o revezaria no turno da tarde não pôde ir obrigando-o a dobrar a jornada. Nada que o incomodasse. Não havia nada de realmente importante a fazer longe dali naquele dia. Mais tarde sim, um sucessor viria assumir o posto no turno da noite e ele poderia ir sossegado para casa. Não tinha pressa em chegar. Sua esposa e sua filha estavam fora, passando uns dias com a avó adoentada, deixando-o só em casa. Pensou, desanimado, que teria ele mesmo que preparar o jantar, uma vez que o supermercado e a padaria não mais estariam abertos na hora em que estaria de volta à cidade. Olhou pela janela com um suspiro, contemplando o escuro matagal que cercava a estação. De súbito, o açoite de um cortante arrepio lhe correu o corpo como um violento choque elétrico. Estremeceu e retesou-se na cadeira sentindo-se gelar inteiramente. Poderia jurar ter visto, num relance, alguém ou alguma coisa parada de pé no alto do barranco mais acima do alojamento.

O que quer que fosse, porém, não estava mais lá quando fixou o olhar. Ainda correu os olhos ao redor para certificar-se de que não havia sido uma ilusão, mas não viu nada mais. Pareceu-lhe bastante real aos seus olhos o vulto estacado e imóvel na borda do matagal.
Por um bom tempo ficou a pensar no ocorrido, até que, horas mais tarde, o carro trazendo o seu substituto chegou para efetuar o revezamento, abstraindo-o de tal assunto. E após explicar sem delongas os relatórios, nos quais nenhuma ocorrência significativa constava, embarcou de volta a cidade, dezenas de quilômetros dali.
O automóvel cruzou o portão da estação, descreveu uma curva para a esquerda e desceu lentamente pelo declive que adentrava a floresta. A luz dos faróis revelando a densa folhagem e as grandes árvores enquanto ia atravessando cautelosamente a escuridão da mata, seguindo pela estreita estrada de terra até a rodovia, e Mateus contemplava a tênue luz da lua que se infiltrava entre os galhos retorcidos.
No dia seguinte, de volta ao trabalho, Mateus fazia uma de suas rondas rotineiras pelo topo da colina. Subiu sofregamente o íngreme barranco ao lado do alojamento sentindo o sol castigar-lhe a nuca. Um gavião piou ao longe. O vento assoviou em seu ouvido, sacudindo o matagal com um suave farfalhar. O silêncio e a quietude ali em cima eram desoladores. Sentiu a poeira grudando-se ao suor do seu rosto e pescoço. Ia tranqüilamente caminhando e esmiuçando o solo procurando algo que o interessasse, a exemplo do anel encontrado na manhã anterior, mas o que encontrou o fez lembrar imediatamente do susto que tomara na noite passada. Algumas marcas no solo e na vegetação indicavam, claramente, que alguma coisa havia caminhado ali durante a noite. Sentiu um calafrio na espinha e a sensação de gelo no estômago. Teria mesmo visto algo ali na noite passada? Examinou com mais cuidado as marcas no solo e o capim amassado e ressecado. Provavelmente algum lavrador curioso estivera por ali dando uma espiada. Desceu o barranco e se dirigiu ao alojamento. Precisava preencher os relatórios de serviço antes que o turno fosse encerrado.
À noite, já em casa, Mateus assistiu a TV após o jantar até que o sono lhe forçasse as pálpebras. Sentia-se orgulhoso por desta vez haver acertado a receita da sopa de legumes que sua esposa costumava fazer. Escovou os dentes e aconchegou-se na cama, sentindo prazerosamente a maciez limpa e seca dos lençóis. Estava de folga no dia seguinte, logo, poderia dormir até tarde. Um meio sorriso lhe repuxou os lábios enquanto abraçava o grande travesseiro de penas. E com estes agradáveis pensamentos, pousou o rosto sobre o perfumado travesseiro e adormeceu.
No meio da madrugada, porém, algo o fez despertar. Um penetrante e acre odor animal de suor e urina, misturado ao de cheiro repugnante de cadáver, impregnou o ar sobremaneira. A náusea que lhe revolveu o estômago em ânsias de vômito e a sensação de dedos quentes e ásperos que o fedor despertou em suas narinas o tiraram do sono como o som de um grito tiraria.
Sufocado, Mateus abriu os olhos. Uma rápida vista pela silenciosa penumbra que inundava quarto. Sua mesa de cabeceira, onde jazia seu exemplar de Misto Quente, o cinzeiro e um copo de água. O guarda-roupas com as portas fechadas, as paredes brancas que, na escuridão da madrugada, assumia um espectral tom de cinza onde as luzes da rua projetavam suas sombras. O teto igualmente cinzento e espectral, como as paredes. O dirigir os olhos para a porta sentiu seu sangue gelar nas veias, ao mesmo tempo em que lutava contra os espasmos de pavor que lhe correram o corpo e retinha um jato involuntário de urina que ainda chegou a lhe umedecer as cuecas. Ali, no escuro, pode discernir apenas um vulto parado de pé na porta aberta do quarto. Era grande. Mais alto que ele mesmo. O cheiro pestilento ardia em suas narinas e, do vulto, vinha o rumor de uma respiração pesada, quase um baixo rosnado. O que quer que estivesse ali parado, não dava a impressão de ser uma pessoa, não parecia ser humano. Horrorizado, sentiu-se petrificar de medo. Fechou os olhos sob o lençol, tentando conter o intenso tremor que o tomava por completo. Pode ouvir os passos da coisa se aproximar sem pressa. Um som ao mesmo tempo suave e áspero, como algo pesado movendo-se sorrateiramente e descalço. O fedor tornando-se mais forte, quase insuportável. O ruído de coisas sendo reviradas. Suas gavetas, as portas do armário, caixas. O som do rosnado baixo e grosso fazia seu estômago contrair-se numa ânsia de vômito. Por fim, os ruídos cessaram. Ouviu os passos se afastarem em direção a porta, e o cheiro foi aos poucos se dissipando no ar parado do quarto. Esperou ainda sob as cobertas algum tempo, mas por fim, desceu da cama e acendeu a luz. O quarto estava totalmente revirado. As gavetas e caixas atiradas ao chão. Roupas, sapatos e objetos diversos misturados e espalhados a sua volta. Obedecendo a um impulso que não soube explicar, Mateus procurou a caixa onde havia guardado o anel achado no topo da colina, encontrando-a vazia. Sentou-se na cama, com o suor porejando-lhe a testa, e acendeu um cigarro, deixando a fumaça de cada tragada lhe refazer os nervos enquanto recolocava no lugar suas idéias.

Créditos: Alexandre Ricardo de Santana
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